segunda-feira, 5 de março de 2012

AO SUL DOS NAUFRÁGIOS

Fotografia de Man Ray

Espelhos. Pátios. Umbrais. Silêncios. Ritos. Esquinas. Exílios. Naufrágios. Horas. Outonos. Janelas. Sombras. Pretéritos. Enigmas. Há palavras que me enunciam. Às vezes as pronuncio em versos. Em susurros ou aos gritos. Para que não morram na minha boca.

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Lady Avalon, by Jeshannon


Parto para Avalon de madrugada

(Para Claudia Schoenwetter)

Parto para Avalon de madrugada.
Levo o mistério dos cinco elementos,
a vara de amendoeira enfeitiçada,
o athame que governa os sete ventos,

o meu Livro das Sombras, minha espada,
minha vassoura de varrer lamentos,
os sortilégios de povoar o nada,
as ervas de cozer encantamentos.

Parto para Avalon, não sei dizer
quando volto, talvez na quinta-feira,
dependerá da bruma e do luar.

Se a bruma for abraço de envolver
e a lua estiver moura e feiticeira,
acho que não, não quero mais voltar.   

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Imagem do filme "Morangos silvestres", de Ingmar Bergman

CARTA IX

Há muito tempo não vinha escrever-te
poemas de exumar melancolias.
Chegou a primavera e sua boca.
Veio o verão com suas mãos azuis.
Tudo passou e não te disse: estou
tão próxima de ti pelo lado de dentro,
tão rente ao tracejar que a tua sombra
desenha nos caminhos do crepúsculo.

Não te contei que estive atarefada
cultivando milagres:
o menino, o jardim, e esses fractais
de nuvens numa suave geometria.

(Também não conta nada o pão ao trigo
nem o vinho aos vinhedos
e são tão consequentes.)

Volto a escrever porque te vi esta noite
atravessar o filtro dos meus olhos
tal e qual como és: no teu peito rasgado
o campanário de uma catedral,
numa das mãos o lápis e na outra o chicote,
e dois ponteiros cegos
perseguindo demoras pelas veias.

Recordei que houve um tempo em que não existias.

Eu era visceral como planta carnívora.
Usava fonte bookman old style
de preferência bold, cursiva, azul.
Era ágil, letal e literária
como um frustrado predador faminto
em selvas de papel.

(Nesse tempo escrevia
como quem joga uma garrafa ao mar.)

Então chegaste com o campanário,
o lápis, o chicote, o relógio no sangue,
e troquei minha selva pelo ofício
de decifrar palavras.

Agora sou tão mansa que ando bebendo o tempo.
Nómade num deserto de minutos,
até me assusta o vento do crepúsculo.

(Por isso escrevo sem outro propósito
mais que reconciliar os paradoxos.)

São necessárias muitas coisas dentro
e duas ou três fora
para dar às palavras a silhueta
de barco ou de punhal ou de jasmim.
Mas eu, que sou tão simples como um número,
apenas necessito duas asas
em voo raso sobre o mar bravio
seguido de um naufrágio
de incomensuráveis proporções.

Ou então de algum código de enigmas
que circule na fímbria dos relógios.

(Apenas nós sabemos que é de Bergman
o relógio dos Números do Tempo.)

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Oleo de Mike Worrall

Despojos de poemas naufragados

HORIZONTE

Acabo de avistar alguns destroços
ao sul dos meus naufrágios.

CADEADOS

Tive um amigo que me abria portas
que levavam a um mundo substantivo
de lógica brutal e infinita ternura.
Além dos cadeados
o mundo era um lugar onde eu estava
em paz comigo.

Tive um amigo que fechou a porta.


INTERMEZZO

Devo encontrar um rio onde lavar
as minhas túnicas.
Alguma margem onde descalçar as sandálias
e mergulhar os pés em água de juncais.

Devo encontrar a árvore
onde enforcar adeuses.

 SENSATEZ

Com prudência enterrou cada lembrança
sob um pó assassino de memórias.

COMPANHEIRO

Cada vez que te vejo caminar
recordo como eras quando tinhas asas.

GRAVIDEZ

No ventre de tudo o que quero te dizer
há um verso pulsando
com nove meses de germinação.

REPRIMENDA

Quando celebras
os ritos da maldade em meus altares
meus evangelhos ficam desfolhados.

NEGLIGÊNCIA

Era um Outono vago e negligente
que se esqueceu de desfolhar as árvores.

PEREGRINAGEM

Do nada em direção a parte alguma
viajava em seus humanos paradoxos.